Em meados do século passado, um fato curiosíssimo prendia a atenção dos
moradores dos Banhados, no segundo distrito de Santa Maria.
Era o caso que, numa ou noutra estância, lá naquelas bandas, de quando
em quando, era encontrada uma esteira nova, sem uso, ou um balaio nas
mesmas condições, objetos esses que mãos invisíveis iam à noite,
ocultamente, deixar ali em lugar que fossem vistos logo pela manhã, ao
começar a faina diária.
De onde vinham aqueles objetos? Quem os teria trazido? Ninguém atinava. Era assim, em verdade, um caso surpreendente.
Agora, o reverso da medalha. Em tais ocasiões sempre desaparecia um
facão, machado ou serrote que ficasse ao relento e, algumas vezes, uma
manta de charque que repousava no varal, ou uma ovelhinha...
É incrivel, diziam todos. Na impossibilidade de ser desvendado o
mistério, a fantasia popular deleitava-se em tecer, em torno do caso,
estranhos comentários, onde sempre o demônio entrava como figura
obrigada.
A princípio, o povo, muito especialmente as mulheres, não tocava nos
objetos achados em tais condições, atribuindo o fato a artes do diabo,
ou pelo menos a feitiço, em que eram mestres os negros escravos trazidos
da costa da África.
Mas com o tempo, verificando-se que as esteiras e os balaios deixados
não faziam mal a ninguém, ao contrário eram uma utilidade evidente, a
prevenção desapareceu chegando ao ponto de algumas pessoas deixarem à
noite, na mangueira ou na frente da casa, facas, tesouras, cordas,
galinhas atadas pelas pernas, na esperança de ser qualquer dessas coisas
trocadas por uma esteira ou um balaio.
Durante anos, tais transações foram, naquele lugar, o fato mais natural
do mundo, tendo perdido seu cunho sensacional, por ter caído no domínio
das coisas comuns.
Em certa ocasião, escravos que andavam à procura de mel em sua mata
virgem, dois quilômetros mais ou menos distantes da casa da estância,
perceberam que do centro da floresta elevava-se espiralando uma tênue
nuvem de fumaça branca.
Surpresos, procurando desvendar o enigma, um dos pretos galgou a copa de
uma árvore gigantesca e lançando o olhar em direção ao ponto de onde
saía o fumo em novelo, descobriu um brasido no meio da mata espessa,
onde negro horrendo se entretinha em preparar um assado.
Descendo, comunicou aos parceiros a descoberta, resolvendo capturar o indivíduo que, naturalmente, era algum negro fugido.
Armados até os dentes, os escravos puseram em cerco o desconhecido e,
avançando cautelosamente, caíram sobre ele, subjugando-o, apesar da
resistência tenaz oposta pela vítima.
Era um negro de proporções avantajadas e de aspecto medonho, em razão do
cabelo emaranhado e pelo hirsuto que lhe cobria a cara, onde os olhos
cintilavam como brasas.
Cobria-lhe o peito e as costas uma couraça de
pele de quati costurada com cipó, e prendia aos quadris uma espécie de
tanga pele do mesmo animal.
Levando à estância e apresentado o novo espécime da nossa fauna a quem
logo chamaram de Pai Quati em razão de sua indumentária, nada foi
possível apurar, de momento, pois o desconhecido não compreendia a
língua portuguesa.
Chamados alguns pretos nascidos na costa da África para se entenderem
com Pai Quati, um deles o compreendeu afinal. Eram nascidos na mesma
região.
Foi, então, explicado o mistério das esteiras e balaios!
O caso era o seguinte:
Tendo chegado o referido preto ao Rio Pardo, em uma leva de negros para
serem vendidos em leilão, conseguiu ele evadir-se e, atravessando
sertões, precipícios e banhados, lutando com feras e as intempéries,
chegou são e salvo ao segundo distrito de Santa Maria, onde, dentro da
mata virgem, armou sua choupana e descansou, em termo.
Bom por índole e honesto por instinto, não quis ele roubar os utensílios
de que precisava, nem a carne que comia quando lhe faltava caça. Assim,
perito que era na manufatura de cestos e esteiras, meio de vida que
tinha em sua terra, dedicou-se ali, a esse mister, trabalhando,
afanosamente, na fabricação de tais objetos para à noite,
misteriosamente, trocá-los em uma ou outra estância, por aquilo que
achasse à mão e que lhe pudesse ser útil.
Em breve, a comovente estória do Pai Quati, correndo de boca em boca, encheu a redondeza.
Todos queriam vê-lo e admirá-lo.
Uma auréola glorificadora circundou-lhe a negra fronte, compensando os
dias de amargura. Livre, convencido de que não seria objeto de compra e
venda, Pai Quati começou a trabalhar de peão aqui e ali, sem nunca
fixar-se definitivamente em uma estância, pois não raro abandonava tudo
para ir, novamente, viver dentro do mato, caçando quatis.
Fonte: Página do Gaúcho (via livro "Estórias e lendas do Rio Grande do Sul", cuja seleção e
organização coube a Barbosa Lessa e que faz parte da coleção "Antologia
ilustrada do folclore brasileiro". Gráfica e Editora EDIGRAF Ltda. 1963.)
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