Rede eletrica deve atingir 100% dos lares gaúchos

Geraldo Voltz Laps
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Está cravado em frente à casa, exposto como um troféu, o objeto responsável por mudar os planos de João Paulo Siqueira, 15 anos. Desde que a antena parabólica foi instalada, o adolescente de Nonoai tirou da cachola a ideia de morar na cidade. Irá interromper o ciclo das duas irmãs mais velhas que partiram do colônia assim que completaram 18 anos. Pés rachados por andar descalço, o garoto mora com os pais numa casinha de madeira na localidade de Via Erechim, na divisa com Santa Catarina. O pensamento de tornar-se um adulto urbano o atormentava.

— Seria inevitável. Eu não ia aguentar aqui, isolado de tudo, na escuridão afirma.

Para o adolescente criado fazendo a lição do colégio à beira de um lampião, a antena de TV alarga o horizonte. Com a chegada da luz, o equipamento virou a porta de entrada para o sonho de continuar na terra cultivada pelos pais.

O povoado onde João Paulo mora é um dos que passaram por uma transformação nos últimos anos. Desde 2004, 350 mil pessoas dos grotões (70 mil famílias) do Estado viram a energia elétrica do programa federal Luz para Todos trazer conforto, despejar informação e facilitar o trabalho rural. O número é superior ao que foi ligado em 30 anos. Até o final de 2009, o desafio é ligar a rede elétrica das últimas famílias do Rio Grande do Sul ainda obrigadas a tatear na escuridão. Em 2008, foram 18 mil ligações em lares gaúchos, 441 mil no Brasil.

Somente agora, a luz alcança praticamente todos os pontos do Estado, 110 anos depois de Bagé entrar para a história como a terceira cidade brasileira a conhecê-la.  Não há pressa entre os que moram nos fundões do pampa, mas Jorge Solis Gonçalves, 53 anos, demonstra impaciência ao improvisar uma antena de taquara com fios desencapados e uma lâmpada fluorescente pifada. A engenhoca é conectada a uma TV 14 polegadas acomodada no banco de madeira da sala. Ao pressionar o botão liga, vê o locutor em meio aos chuviscos da imagem e o identifica pelo voz cristalina:

— Esse é o Galvão? — indaga.

No surrado rádio a pilha do tamanho de um tijolo, Jorge sempre sintonizou as ondas da Rede Globo e vibrava com Galvão Bueno gritando os gols da Seleção. Naquela tarde, enquanto se acomoda para assistir ao amistoso entre Brasil e Itália — jogado no dia 10 de fevereiro —, enxerga pela primeira vez na TV o semblante do narrador. É o começo de uma vida nova, transformada pela energia elétrica que naquele dia chega para seis famílias de Coxilha Santo Inácio, vilarejo escondido entre Santana do Livramento e Dom Pedrito, onde não há nem estrada para facilitar o percurso dos moradores às suas casas.

Zero Hora acompanha o último dia deles sem luz e o primeiro em que não será preciso acender candeeiros e lampiões. O acesso mais viável a Coxilha Santo Inácio é por 48 quilômetros de um esburacado caminho de chão batido.

A família Gonçalves esperou 30 dias entre a colocação dos postes e a ligação. Sonhavam jantar sem a chama bruxuleante do lampião. Mas chegaram a pensar que a rede de fios jamais seguiria os caminhos tortuosos que levam ao lugarejo.

Denise, 15 anos, a caçula dos três filhos, era a mais agitada. Duas ou três vezes por semana, ela atravessava o campo em 40 minutos de caminhada, à noite, para olhar novela na casa de um vizinho. Na hora do jogo da Seleção, não se interessa em se agrupar diante da TV.

— Pai, não gosto de futebol — diz Denise.

— Hoje vai ter que gostar, guria. Hoje a gente vai dormir com televisão ligada, luz acesa e ventilador girando. Tudo ao mesmo tempo — responde Jorge.

Geladeira eles vão comprar nos próximos dias para abandonar de vez o charque. Passaram a vida toda saboreando carne fresca somente no dia da carneação. O que sobrava do bicho era salgado, fatiado e pendurado em varais, como faziam os antigos tropeiros. Bastou o medidor de luz girar para que o ferro de passar roupa, antes aquecido na chapa incandescente do fogão à lenha, virasse escora da porta. A máquina elétrica de costura substituirá o enferrujado aparelho de pedalar, que dá cãibra nas pernas de Vera, 43 anos, mulher de Jorge.

— Só não digo que parece mentira porque todos os dias a gente orava para isso acontecer, comemora Vera.

Finalmente, a única tecnologia da casa, nos últimos cinco anos, não terá mais horário certo para entrar em uso. O celular — que chegou antes da luz — pode ser carregado quando for necessário. Eles ligavam o equipamento somente ao fazer o telefonema. Assim, a bateria resistia pelo menos 15 dias.

Na propriedade de 80 hectares onde os Gonçalves criam gado, ovelha e porco, as ambições são pequenas. Uma delas é um freezer desses horizontais, para armazenar bastante carne. Vera já especulou o preço. Acredita que os R$ 1,2 mil dos 10 leitões vendidos no Natal serão suficientes para a compra. Outro desejo é um motor elétrico de puxar água. Assim, acabarão as idas ao açude e o sofrimento de buscar água de carrinho de mão. O lampião fumarento, agora, vai para o mesmo galpão de onde saiu a antena da TV.

Fonte:Zero Hora

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